(foto de Paulo Machado)
Quando era menina Alice sonhava com uma vida imensamente feliz, e acreditava profundamente na sua concretização.
A Alice é uma mulher de contactos físicos, de químicas e de sentidos.
Toca para sentir a pele, a sua textura, o seu calor e reacção.
Cheira para absorver os odores do seu espaço e de quem dele faz parte.
Beija para saborear e apreciar o gosto de quem gosta.
Olha, observa, fica estática na apreciação dos corpos, das pessoas e seus comportamentos.
Ouve atenta as palavras soltas, os segredos e os desabafos que lhe chegam.
Para Alice tudo tem sentido, tudo é possível e viável, custa-lhe perceber os entraves e as considerações que fazem a esta sua postura crédula e confiante.
Alice é morena, tem cabelos e olhos castanhos-escuros, de estatura baixa. Anda sempre de sorriso rasgado até aos olhos, um piscar de olhos pronto para qualquer pessoa que se lhe cruze, uma palavra para quem a procura, e um colo generoso a quem precisa.
Não tem problemas que a aflijam e é capaz de enfrentar todo e qualquer desafio.
Afável e bem disposta sente e aprecia as pessoas como são, como actuam, falam e vivem as suas vidas. Incapaz de comentar e julgar comportamentos, custa-lhe aceitar e perceber a necessidade que outros têm de o fazer.
Não raras vezes dizem-lhe
não percebo como podes gostar de estar com aquela pessoa
como podes tu ser amiga dela?..., e a sua resposta é invariavelmente igual
gosto das qualidades que tem, os defeitos nunca convivi com eles
.
O tempo passou, os comportamentos mantêm-se.
Apenas Alice já não é a mesma, já não vive e funciona com a mesma ingenuidade.
Quando acorda pela manhã deixa-se ficar de olhos fechados numa tentativa frustrada de adiar mais um dia.
Quando se deita à noite mantém os olhos dolorosamente abertos, a mente ocupada com livros que lê, os ouvidos despertos aos sons que escapam da televisão, tentando evitar o inevitável fim de dia que iniciará outro sempre igual.
Alice já não sorri tão facilmente, os olhos deixaram de se iluminar solidários, o colo disponível de outrora está vazio de conforto e de contactos, as palavras que pronuncia são descomprometidas de calor e de sentido.
Alice deixou de acreditar nos sonhos que a fizeram sorrir, amar, falar, confortar e acreditar.
Quando olho para a Alice, lembro-me dos sonhos que tinha, da força que transmitia, sobretudo recordo a confiança inabalável no amor dos que a rodeavam.
Alice descobriu que o amor é destrutível.
Alice descobriu que o amor não sobrevive.
Alice descobriu que ser amada não era suficiente.
Alice descobriu que queria amar.
Alice descobriu tarde demais.
Descobriu que o amor acaba quando não é devidamente confortado.
Descobriu que o amor tem de viver e ser livre.
Alice quando começou a amar esqueceu quem a amava.
Alice perdeu o amor.
Descobriu que o amor que conhecia e descobria agora não era suficiente para compensar a perda do amor que os outros lhe tinham.
Alice não sabia nada, e quando começou a pensar que sabia percebeu que sabia menos ainda.
Como poderia ela saber?
Como poderia ela imaginar?
Afinal saber e imaginar não é o mesmo que sonhar, e Alice apenas sonhava.
Minha querida e ingénua Alice, como poderias saber que deixariam de te amar no momento em que começaste a amar outros que não eles?
Como irias saber que o amor que encontraste era contrário a todos os princípios que te incutiram e que sempre seguiste?
Seria possível não te conhecer devidamente? Não terem percebido que quando encontrasses o amor irias querer vivê-lo? Afinal conheciam-te desde sempre
Como saberias que a pessoa que sempre foste para eles não era a mesma que tu és?
Afinal tu foste sempre tu.
Pois é Alice, a vida não é feita de sonhos, principalmente quando eras a única a sonhar, e quando aquilo a que anseias é tão diferente do que todos os outros querem e desejam.
E olhando para ti, conhecendo-te como conheço sei que tudo aconteceu porque tu sempre foste quem eles queriam que tu fosses, o que não sendo contrário a ti, enquanto ser humano, tornou-se incompatível com o teu verdadeiro ser de mulher estimulado por um amor sonhado.
Os sonhos deles vividos através de ti bastaram-te, bastando-lhes também, enquanto nada afectou os teus dias ou as tuas noites.
A tua vida deixou de ser bastante para os sonhos que quiseste viver, e isso, eles não conseguiram suportar nem aceitar.
Afinal de contas tu não eras quem eles sempre conheceram e amaram.
E essa diferença era, é e será sempre grande demais. Para ti e para eles.
Para ti que não consegues perceber porque não te amam por quem és!!!!
Para eles que não conseguem perceber porque mudaste (eles não sabem que foste sempre assim
).
Tenho saudades tuas Alice.