Segunda-feira, 24 de Outubro de 2005
Ali deitada, num sossego quase torpe, Alice olha o homem deitado a seu lado
Ontem, ao deitar-se na cama vazia, não esperava que ele viesse acordar ao seu lado. Não o desejava sequer.
Os olhos fechados atribuem ao homem uma tranquilidade quase infantil, num contraste vigoroso com o seu corpo grande.
Quando Alice acordou, esticando-se na cama grande, à procura dos espaços frios que a fizessem recolher o corpo numa bola fechada, retendo assim o quente da cama, sentiu que não estava sozinha.
Devagar abriu os olhos sonolentos e viu-lhe os cabelos curtos, a testa relaxada, a boca cheia, o nariz grande, a face quase escondida por entre as almofadas. O peito moreno, coberto pela penugem, outrora escura, hoje pintalgada de laivos brancos e grisalhos, sobe e desce tranquilo, numa respiração serena, quase inaudível.
Alice aproxima o seu corpo pequeno do homem adormecido. A respiração dele torna-se mais espaçada, num controle próprio de alguém que acaba de acordar.
Olá
a voz rouca, entaramelada, sobressai no silêncio matinal sobressaltando Alice na sua observação.
Sem resposta, o homem abre os olhos.
Alice recua por entre os lençóis já frios, cobrindo o rosto nos folhos da fronha azul escura, e ali se deixa ficar alerta e atenta.
- Ontem, quando cheguei, dormias, resolvi não te acordar
! - Suspira, numa quase desculpa, pela invasão do espaço que ocupa.
- Não esperava que viesses. A voz de Alice sai segura, amável, tensa. Sem perguntas.
- Porque não? Interroga ele, aproximando-se suavemente do corpo encolhido, colocando a perna por cima do corpo de Alice, pressionando-a contra o colchão e arrastando-a para junto de si.
- Não sabia se voltavas
Alice responde enquanto as suas costas encaixavam no peito amplo.
As mãos grandes cobrem-lhe os seios pequenos, a perna dura e pesada aperta-a contra ele.
- Tive saudades tuas... Sussurra, o hálito quente, por entre o cabelo de Alice.
A boca repousa então silenciosa na curva do pescoço, silenciada pelo desejo intenso que o corpo do homem exprime.
Alice desprende-se do corpo que a segurava, erguesse da cama desfeita, de pé olha para trás para encontrar o olhar vazio, desconsolado do homem.
- Deixas-me aqui? Assim?!!! Apenas a voz reflecte a emoção presa no corpo faminto.
Alice ajoelha junto à cama baixa, os seios contra a beirada da cama fria, as mãos apertando os lençóis desfeitos, o olhar de um chocolate fervente encara o rosto que se ergue apoiado pelo cotovelo.
- Habituei-me a não esperar por ti! - As mãos de Alice, soltas e suaves, acariciam o rosto masculino.
O homem fecha os olhos, absorvendo o toque, encostando o rosto nas palmas abertas das mãos frias. Pressente na voz de Alice, de uma tristeza infinita, uma verdade aceite e já cómoda, como se o tempo que havia passado fosse já feito disso mesmo, de passado e nostalgia.
Incomoda-o não perceber em Alice a entrega de outros dias, outras noites e manhãs, como se algo lhe escapasse por entre as mãos, num descontrole pouco habituado a experimentar.
Alice, de novo em pé, veste a gabardina cinzenta, aperta com força o cinto, calça os sapatos pretos de salto agulha, recolhe no saco a restante roupa que não quer vestir.
- Vais-te embora Alice? A pergunta sai-lhe em tropeções, num esgar de nervos e raiva.
Sim, vou para casa
suspira a mulher jovem enquanto se dirige para a porta. Volta o olhar para o homem que, em pé, a observa afastar-se. Um último olhar.
- Alice?!!! A voz embargada de uma emoção desconhecida fica no ar, expectante.
A porta fechada, um olhar rápido, as chaves de Alice pousadas na mesa.
O diário de Alice, aberto na última página escrita, revela a noite passada a escrever.
Ele não veio. De novo. Habituei-me a não esperar por ele, e nesse hábito aperfeiçoado todos os dias, noites e manhãs esqueci-me do amor. Hoje descobri que não sei amar. Já não sei amar. Hoje não espero por ele.
O ponto final forte e bem pisado revela uma vontade forte, uma certeza convicta. Sem Adeus, sem Até à próxima.
Deixou-o sozinho, sem ninguém para quem voltar.
Chora.
Não percebe porque Alice foi embora.
Terça-feira, 18 de Outubro de 2005
Mergulho na banheira de água quente, submergida, sustenho a respiração até ao limite. Lentamente, sem pressa, retomo a vida, enchendo o peito de ar.
Recosto-me contra a frieza gelada da cerâmica branca.
Cerro os olhos.
O corpo perde força, libertando-se do cansaço, do suor, do cheiro a cigarro. Livre do dia que acabou.
Com o pé empurro o frasco de óleo de banho para dentro de água, vazando a totalidade do seu conteúdo.
O cheiro a rosas invade o espaço num odor doce e agreste numa mistura almiscarada e sempre calmante aos meus sentidos.
Ninguém em casa.
O silêncio deixa ouvir os primeiros sons da noite, os pássaros anunciando o regresso ao ninho, os carros que passam céleres numa invasão de fim de dia, o ruído incessante dos cães adivinhando o regresso iminente dos seus donos.
Às escuras, aninhada na água quente, no silêncio do meu fim de dia escuto a minha voz. Os segredos invadem o meu peito, a luz invade-me o olhar, a saudade aperta-me o peito. Baixinho, a sussurrar, a voz dos meus sonhos ocupa o espaço que tantas vezes lhe roubo. Aquela voz silenciosa que poucos conhecem, e quase nenhuns entendem.
É a voz sem palavras, sem pronúncias, erros ou acentos. É a voz pura e nua que evolui dentro de mim, nunca me deixando esquecer quem sou e quem sonho ser.
Ergo-me sobre a água quase fria, o corpo pingando num restolhar de sons invasores. Abro o chuveiro, deixo a água queimar-me a pele, coloco o rosto sob o jacto forte, e, mais uma vez, sinto parar o tempo.
Acaricio o corpo quente enquanto liberto o creme hidratante espalmando a esponja contra o meu peito. Os cabelos embaraçados pedem atenção e sem paciência passo o creme que os manterá macios.
A água do chuveiro cai incessantemente entorpecendo outros sons e a realidade para além do espaço onde estou.
Os olhos abrem-se para encontrar a escuridão instalada.
O banho termina, enrolo a toalha nos cabelos e deixo que o meu corpo se enxugue naturalmente.
O espelho reflecte-me. Ou apenas reflecte os que os meus olhos vêm?
Deixo que a camisa de noite, branca, deslize sobre o corpo, segura pelas alças finas.
Descalça, subo ao quarto onde a cama aberta deixa ver os lençóis alvos que me estimulam os sentidos.
A luz da noite encaminha-me para a varanda, pela qual posso apreciar a luzes pequeninas de cada casa lá fora. As empanadas verdes ficam abertas pela noite dentro.
Deito-me na cama larga, abraço a almofada vazia e adormeço.
Acordo.
A noite ainda é longa.
Levanto-me e no silêncio do meu tempo dispo a camisa que me sossegava o corpo e guardo-a com delicadeza na cómoda vazia.
Lá fora já não há carros, nem os cães ladram, sequer ouço os pássaros. As luzes, essas, continuam acesas como faróis num qualquer oceano desconhecido.
Na varanda as empanadas verdes são fechadas, a porta atrás de mim encerra-se.
O quarto fica vazio à espera das minhas saudades.
Desço à sala, ligo a televisão, a publicidade da madrugada invade o ecran enquanto visto o roupão que havia ficado no sofá, pego no último livro e aguardo que a noite acabe.
Segunda-feira, 10 de Outubro de 2005
Jeans azuis, top florido de decote profundo, soutien e cuecas de renda branca e recortada.
O banho quente havia deixado a pele pronta e sensível, o creme, levemente perfumado, hidratava a pele morena, deixando-a suave e sensível.
O espelho revelava uma mulher jovem, expectante, os olhos escuros cheios de brilho antecipando a partilha de um olhar há muito esperado.
Um sorriso rasgava as faces coradas, num nervoso escondido e miudinho.
As sandálias de salto alto dando-lhe a segurança de um equilíbrio estudado para o corpo pequeno.
Os cabelos de um castanho reflector de mil tons caíam suaves e soltos pelos ombros, acariciando meigamente o meio das costas.
As últimas gotas de perfume condensam-se na pele quente, escondendo-se silenciosas nos recantos mais íntimos de um corpo feminino.
Um respirar profundo exorta a coragem que não possui, e afasta os medos que a cerceiam.
Estacionada aguarda o carro escuro que a guiará ao destino que desconhece e deseja mais do que à vida.
O espelho retrovisor mostra a frente de um carro, no qual se desenha o perfil do homem que vai encontrar. Pára ao seu lado, o vidro desliza e ele sorri-lhe. O silêncio fá-lo inclinar a cabeça num convite proibido e logo aceite.
Arrancam, um atrás do outro, a mulher seguindo o homem. Ele conhece bem o caminho. Ela não sabe nada.
Entram no prédio discreto, ela reconhece cada pedaço, sem nunca ali ter estado, tantas foram as descrições que ele lhe fez, numa tentativa até aquele momento gorada de a fazer chegar até ele.
O apartamento fica no rés-do-chão permitindo um acesso rápido e fácil. Em nenhum momento aquele homem e aquela mulher poderiam ser ligados um ao outro, ninguém diria que aqueles dois seres se conheciam, e que entre eles havia um fio finamente tecido, feito de sonhos, fantasias, curiosidade e tesão. E amor.
Talvez alguém que passasse naquele instante pudesse olhar os olhos dela e ver o quanto aquela mulher amava o homem que seguia na sua frente.
A entrada é escura.
Lá dentro os olhos habituam-se ao escuro, vislumbram formas de móveis, percebem divisões que ela não conhece.
Ele, senhor do seu território, movimenta-se rapidamente, e desaparece no fim do corredor cinzento.
Sozinha, olha à sua volta, entra num sala vazia, o saco escorrega-lhe pelo ombro.
Ele está atrás de si.
Sente-o mais do que a si própria, quase como alguém que observa à distância uma história que não é a sua.
Volta-se e encara o homem alto à sua frente.
Ele está nú.
Não, não era assim que tudo deveria começar.
Ela não quer ouvir, não quer desistir, não pára para pensar, sacode a cabeça.
As vozes desaparecem.
Ele está ali.
À sua espera.
O medo de falhar fá-la forte, encorajando-a e guiando-lhe os passos de um caminho que hoje vai descobrir.
Os corpos tocam-se, as bocas beijam-se, as mãos apalpam e tocam numa excitação crescente.
As mãos dele são rápidas, os gestos também.
Ela, num assomo de uma lucidez perdida, ainda lhe sussurra
estou aqui porque te amo
. Não parece que ele a tenha ouvido. As palavras depois de soltas perderam a importância que continham. Até para ela.
Levanta-se e entra no WC, nem olha o espelho, apenas deixa a água fria escorrer-lhe pelo corpo inundado de odores.
Ele, que a seguiu, vem dizer-lhe que só há uma toalha que terão de partilhar.
Rápido, numa naturalidade feita de experiência, não percebe que aquela mulher apenas queria que ele a abraçasse.
Os pingos de água deixam pegadas atrás de si enquanto se deita de costas viradas para o espelho do roupeiro, o rosto na parede, os olhos tão abertos que doem.
O corpo dele cobre-a e recomeçam um caminho recente e ainda insatisfeito.
Mais tarde, ainda deitada e preenchida, observa a coberta miserável que cobre a cama onde repousa. A mão percorre os desenhos quase irreconhecíveis outrora revelados no tecido gasto.
O homem, percebendo-lhe os movimentos, vira-a para si e sorrindo diz
bem vinda ao Estádio de Wembley
enquanto solta uma gargalhada vibrante.
O sorriso que a mulher segura na face triste quase se apaga, sem esforço solta-se do corpo que a segura, junta a roupa dispersa e diz baixinho
tenho de me ir embora. ouvindo-o dizer enquanto se veste
eu também, ainda vou a Vigo ao bingo, o A. está à minha espera
.
Num esforço desumano ainda capaz de mimar o homem que a observa chega-lhe as chaves do carro.
Agora na frente, aquela mulher conduz de regresso ao parque de estacionamento onde horas antes esperara pelo seu amante.
Os trinta anos de vida pesam-lhe e percebe num relance que acabou de perder a inocência que acreditava ter perdido muitos anos antes, compreendendo agora que essa ingenuidade fora paga a um preço demasiado elevado.
No espelho vê reflectir o sinal de luzes que ele faz ao despedir-se enquanto a ultrapassa.
Acena-lhe sorrindo, o peito ofegante, a garganta oprimida, os olhos tristes e escuros.
O telefone toca o número dele aparece no visor.
- Amo-te linda!!!
O telefone desliga-se.
Na mulher serena que desce as escadas rolantes, no shopping, em direcção à amiga cúmplice que a aguarda, apenas se nota o brilho febril do olhar.
À sua volta tudo se mantém igual.
Ela não é a mesma.