Sábado, 30 de Abril de 2005

Corpos nus

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Encostei-a contra a parede. Braços erguidos, ligeiramente afastados do corpo.

O seu rosto observa os meus gestos. O seu olhar não me interroga, apenas espera, aguarda os meus movimentos.
Afasto-me.
A luz difusa tapa o seu corpo nu.
Abro as persianas de madeira, queimadas pelo sol, e a luz da cidade invade o quarto, iluminando o corpo perdido num quarto escondido.
Observo-a.
Os raios de luz deixam listas no seu corpo, que se mexe procurando o conforto que a sua entrega exigida não permite ter.
O meu corpo reage. As mãos transpiram-me, o suor escorre já pelas minhas costas, a boca seca faz-me perceber o meu desejo.
O seus cabelos castanhos, pelo ombros, rebeldes do tempo que fazia lá fora, estão presos de um lado do seu pescoço, deixando-o ser apreciado.
Está descontraída, aguarda-me.
Dispo-me.

Descalço, as calças escorrem pelas minhas pernas quentes, afasto-as para um canto. A camisola branca segue-lhe o rasto.
Nu.
Despido de tudo e de todos. Nu de mim. Estou só. Livre para mim. Para ela. Ansioso de provar o que anseio há muito tempo.
Não lhe toco. Ainda.

Os meus olhos fazem um reconhecimento para o corpo que vou tocar e viver. Quero a imagem do seu corpo gravada não apenas no meu corpo, mas na minha mente, para sempre, dentro de mim.
Inalo devagar o seu odor, a sua marca de mulher. Longamente para nunca esquecer.


Maçã, os seus cabelos cheiram a maçã.Invadido, aproximo-me dos seus cabelos, que estáticos se colam ao meu rosto. Penetram em mim. Na minha pele, invadem a minha boca, fazem-me pestanejar. São fortes. Resistentes. Deliciosos.


Expiro sobre o seu ombro nu. Os meus olhos seguem o meu respirar. A sua pele é lisa, morena, salpicada de pequenos sinais. Parecem pingos soltos sobre uma tela exposta num estúdio qualquer, de um qualquer sonhador à procura da sua musa.
Sinto-a, enquanto o seu corpo estremece, relaxa os braços, que caem distendidos, reencontrando o seu corpo.
Quase a sinto proteger-se.


A minha boca cola-se naquele ombro salgado, seguindo a curva que leva ao interior do pescoço, para logo retornar, delineando o contorno do início do seu braço. A minha língua toca-lhe leve, intensamente molhada, deixo-a repousar, enquanto os meus lábios apertam e retêm a saliva que me sacia.
As minhas mãos seguram as suas.


Encosto-me, deixando-me repousar livre e pesado sobre ela.
Arqueja, sentindo meu peso. Sente o calor que emano. O meu corpo excitado quase doendo, quase rebentando.
Ajeita-se contra mim, percebe que é o meu apoio.
Preciso dela.


Viro-a para mim num movimento inesperado.
Os seus olhos castanhos brilham, reflectem o meu olhar atento e expectante.
A sua boca vermelha está entreaberta, a ponta da sua língua assoma ao seu lábio superior, tentando-me.
As suas faces coradas estão quentes e salpicadas de pequenas sardas que o sol deixou no seu rosto trigueiro.
O cabelo emoldura um rosto belo.
Uma beleza que saberei recordar.
Os seus seios pequeninos espetados, com mamilos erectos e escuros, uma auréola picada de pequenas borbulhinhas, sinal evidente da sua excitação. Concentrando ali todo o seu poder de mulher.
Continuo a percorrer aquele corpo, descobrindo a sua cintura, onde no meio reside o sinal que prova o seu nascimento. Tem um umbigo pequenino, quase fechado, com uma escuridão que me faz adivinhar a sua profundidade. Um sinal negro repousa ao lado. Toco-lhe levemente.

A minha mão treme, os meus dedos quase se retraem.
Tem um relevo que me faz ajoelhar para o conhecer. Para o provar.
A minha boca encostasse devagarinho, temendo o recuo do seu corpo, que não acontece. A minha língua lambe o sinal marcando-o. Logo descaindo para o seu umbigo. É fundo. É salgado. A sua pele arrepia-se. A penugem que aparece naquela barriga salta espantada pelo toque longo e desconhecido.
O meu corpo lateja, sinto-me pronto a explodir, a minha cabeça já não pensa, o meu corpo exige mais.
As minhas mãos apertam-se em redor das suas ancas, forçando o seu corpo de novo contra a parede.
Desapoiado, deixo-me sentar sobre os meus pés.
Encontro o seu centro feminino, quase despojado de pêlos. Apenas um pequeno triângulo. Ergo o meu olhar para a ver sorrir. Um olhar estonteado que ela recebe calma e segura.
Ergo a minha mão aberta que desce pela sua cintura, roça devagar a textura dos seus pêlos que nada escondem. Entreabre ligeiramente as pernas, deixando aparecer o desenho exterior de um sexo quente e excitado.
O seu cheiro atinge-me. È tão forte e desconhecido que me inclino e absorvo aquele ar quente almiscarado que se solta do seu interior.
Enterro o meu rosto no seu sexo, o nariz enfiado no início da sua vagina, os meus braços apertando as nádegas lisas e morenas.


Os seus braços repousam então sobre os meus cabelos. Os seus dedos sentem a textura do cabelo duro e quase rente que me cobre a cabeça. Inclina-se sobre mim, os seus cabelos caem soltos, nos meus ombros, nas minhas costas, num movimento tão natural e sedutor como a sua própria génese.Deixasse ajoelhar, roçando o corpo quente no meu. Atrevida, honesta, desejosa de mim. A minha cabeça baixa olha para o chão que nos ampara. A sua mão segura o meu queixo erguendo-me o rosto. Os nossos olhares fundem-se numa vontade sem palavras, apenas a certeza de dois corpos que se querem unir.

Seguro-a pelo tronco, fazendo-a rodar, o seu corpo deitado espera por mim. Debruço-me sobre ela e beijo-a. Um beijo despojado, as bocas que se encaixam, os lábios que se experimentam. As línguas dançam, tocam-se, atravessam, lambem, chupam e mamam. Saboreamos o nosso desejo. Provo a sua saliva. Dou-lhe a minha provar. Sorve-a qual vaso seco de uma flor que quer desabrochar. Os dentes tocam-se estabelecendo limites num beijo livre. Logo desaparecem tocados por bocas quentes, com sabor a vida, a dia, sabor de quem as possui e as dá.

O meu sexo encostando no seu ventre, deixa o seu rasto de vida. Vida que pinga lentamente, num líquido quente, transparente e calmo. A sua mão procura-me. Toca-me. O seu dedo roça a glande sensível para poder saboreá-la. Num gesto, deliberadamente quieto, eleva a sua mão molhada de mim. Observa-a, fazendo-a movimentar-se, deixando que contrastes de luz lhe dêem um protagonismo maior. A sua língua passa pela palma da sua mão, lambendo devagar, chupa cada dedo como prenúncio de gestos que estão para chegar.

Ergue o corpo, posicionando-se num convite mudo. Ofegante faço-a pousar de novo no chão, e o meu olhar fá-la entender que os movimentos são meus, respondendo afirmativamente ao seu desejo.

Recuo, o seu corpo exposto, anseia o meu toque, anseio tocá-lo. O meu sexo palpita, em movimentos descontrolados, apontado o caminho que deseja ver iniciado. Toco-me. A minha vida, o meu sangue, os meus sonhos quase brotam descontrolados. Acaricio-o num gesto reconhecido, procuro o prazer experimentado da minha solidão. Sinto o seu olhar sobre mim, sobre o que faço. Fixo o seu olhar enquanto me masturbo para mim.Ela descobrindo quem sou. Um som gutural abre caminho pela minha garganta. O momento aproxima-se. Todo carne, sangue, suor, num palpitar constante e estremecido. Vou rebentar. A minha cabeça voa, o coração aperta-se, nem respiro, apenas aguardo o meu descontrole, o corpo coberto de suor. A dor chega, resisto-lhe, perco-me nela e deixo-a livre.

Um toque frio, um ninho que me acolhe, a sua boca fecha-se sobre o meu pénis duro, latejante, quase negro de tão contraído. As minhas mãos ficam livres, fecham-se como punhos, para logo segurarem o cabelo qu eesconde o seu rosto. Como um naufrago que chega a bom porto o meu corpo rebenta, perdido nos confins de uma boca generosa.

Tento libertar-me, quero explodir sozinho. A suas mãos que rodeiam o meu sexo, seguras, não me libertam, antes proporcionam um prazer infindável, a sua boca engole o meu jorro de sémen, pedindo mais, mamando, lambendo, puxando, como que não podendo libertar-se do poder que abocanha e aprecia. Exausto, afasto-lhe o rosto, noto a sua respiração entrecortada, a língua que exibe enquanto lambe a sua própria boca, os olhos que brilham, as faces vermelhas e quentes.

O seu corpo repousa, então, sentado, apoiado num braço. A outra mão acaricia o pénis murcho, dolorido, sensível demais ao seu toque. Sorri, em silêncio, numa prazer que desconheço. O segredo de ser mulher e do prazer que proporciona guarda-o dentro de si.

Deita-se no chão, agora molhado, frio, e com as mãos pede-me que repouse no seu peito. Assim faço obediente. Acaricia-me o rosto, onde uma gota de suor percorre a minha têmpora, para cair no peito que me aconchega. Fecha-me os olhos, e balançando-se devagarinho faz-me retornar a um colo há muito esquecido.
Sexta-feira, 22 de Abril de 2005

A porta aberta.

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Fechei a porta.
Os olhos fechados guiaram-me até ao meu quarto. Descalcei as sapatilhas brancas.
Os pés nus, castigados pelo cansaço do dia, sentiram o frio da madeira que pisavam. Os dedos retraíram-se para logo se distenderem relaxados, apreciando assim o frescor da liberdade.
Apertei o olhos, forçando até magoar, pontinhos negros, brancos surgindo por todo o lado, qual caleidoscópio a preto e branco.
Tonta e quase em desequilíbrio, desabotoei os botões das calças, soltando o ventre escondido, respirei fundo e dei um passo em frente.
Entro no meu quarto, tentando adivinhar se a cama está desfeita como a deixei, ou se pelo contrário tudo está arrumado e no devido sítio.
Abro os olhos, o meu quarto está arrumado. As bonecas dispostas por tamanhos.
Habitualmente é pela cor dos cabelos que as disponho.


As de cabelos castanhos no chão, junto à janela, as ruivas no meio da cama simplesmente largadas, as loiras no espaço junto à cabeceira da cama deitadas nas almofadas, as descabeladas, nuas e pintadas estendidas na soleira da janela.


Volto-me, no penteador estão colocadas as caixas onde guardo os
acessórios. Na caixa verde lima estão os anéis e alianças, na caixa azul forrada com conchas partidas da praia estão os colares e pulseiras, na gaveta entreaberta percebo a fita vermelha que me segura os cabelos enquanto estudo,certamente agarrada à escova que me penteia.
Sento-me na cama. Respiro fundo. Não reconheço o cheiro que me rodeia.
Levanto-me de novo.
Abro o roupeiro. Lá está o meu impermeável vermelho, ompanheiro fiel nas minhas caminhadas pelo areal. O casaco castanho continua ali, esquecido na última cruzeta. Os jeans equilibrados num cabide único. Os claros e rompidos por baixo, os azuis esbatidos, já no acto de compra, pelo meio, os jeans
azul-escuro no topo.


Que mania a mãe tem de ter tudo alinhado!!!.


Na mesinha de cabeceira, castanha e que já foi mesa redonda num canto da sala, estão as fotografias. Alinhadas quase cronologicamente. Lá estou nua sobre uma almofada aos seis meses, a minha bicicleta azul com tirinhas amarelas
penduradas no guiador, a primeira comunhão e os laços brancos que me prendiam os cabelos castanhos, outra onde apareço mais crescida na praia com um rancho de meninas sorridentes e morenas.


A Alice, a Diné, a outra deitada ao meu lado parece-me a Nanda.
Mas não deve ser. Ela nunca sorria.


Ao centro, embaraçando-me, como então, está a foto oficial dos meus dezasseis anos, penteada no salão de cabeleireiro da esquina, em pose firme, olhar distante com um brilho que o fotógrafo nos seus retoques fez existir.
Do outro lado, alinhados na estante de contraplacado, estão os livros das horas soltas. Acho que estão todos.


Quando arrumo nunca os consigo juntar todos. À laia de decoração, deixo uns perdidos pela sala, outros na cozinha junto ao cesto da fruta, ou então espalhados pelo quarto numa desarrumação, convenientemente, arrumada.


Reparo, então, que a minha cama ostenta a colcha de renda branca, feita à mão pela minha mãe, anos a fio, esperando o dia em que me tornasse mulher.
Naquele dia em que o meu corpo de treze anos foi acordado, pelo sangue que me escorria pelas pernas, a mãe deu-me a colcha branca de renda, em ponto fechado, sinal de um ciclo que se fechava.
Ou seria pelo que então começava?
Nunca foi usada, era tão bonita que não me atrevia a deitar-me sobre ela, sabendo que o trabalho de anos seria maculado.

Hoje, o sangue, já não escorre pelas minhas pernas, antes pulsa pujante e quente, feito ninho aconchegante da vida que cresce dentro de mim.


Aliso a colcha, enquanto toco o meu ventre nu, afagando ambos, lembrando tempos idos, sabendo que deles vive o presente, para um futuro que já não é só meu.

Está tudo perfeito.


A mãe sempre disse que a apresentação de cada um, e do espaço que o rodeia, é reveladora da sua personalidade.
Nunca concordei, principalmente quando notava o seu olhar recriminatório sobre mim, observando as calças rotas e desfiadas, t-shirt emprestada, e as chinelas rompidas pelo uso constante.


Eram chinelas de enfiar o dedo, talhadas em couro, compradas numa qualquer feira de artesanato.
Eram lindas. Por onde andarão?


Saia para a rua feliz, despreocupada, certa de não estar errada nas minhas escolhas.


A mãe ainda iria perceber isso.


...
Ouço um ruído de chaves, a porta de casa abre-se, ouço os sons abafados de
passos que se tornam lentos, uma gaveta abre-se, as chaves caem lá dentro.
Não a ouço fechar-se. Alguém parou no corredor.
A alça do meu saco desaparece do chão. Alguém levantou o saco.
- Olá Mãe! - Arrisco inquieta.
O meu saco apertado contra o seu peito, os olhos aflitos trespassam o meu corpo por tanto tempo afastado.
- Então? Não dizes nada! - Insisto quase agoniada.
O silêncio da sua resposta dói. A dúvida no seu rosto rasga-me o peito em mil pedaços.


Mãe!


Dou um passo para ela, as suas mãos deixam cair o saco e enfrentam-me, palmas abertas, poderosas, negando o espaço que nos afasta.
Os seus olhos secos de lágrimas pujantes de dor. A dor que começo a entender.
Nas suas mãos aparecem os meus chinelos velhos, gastos, que aperta agora contra o rosto, contra o peito.
Sigo aqueles gestos sentindo neles um ritual há muito instalado.
Prostra-se junto aos meus pés descalços e nus, calça-me os chinelos que me serviram outrora.
Teimosa, empurra balbuciando,
- Já te serviram um dia, porque não servem agora? - Questiona no seu monólogo murmurado, sem procurar a resposta para além do seu olhar.
- Mãe, olha para mim - Rogo-lhe, enquanto me ajoelho à sua frente.
Os seus olhos piscam, as mãos tocam-me o rosto, num tactear de reconhecimento feroz, que me arranha e magoa.
As palavras saem em silêncio, surdas, numa incapacidade brutal de se fazer ouvir.
- Mãe, perdoas-me? - Baixinho, quase inaudível, sai o meu pedido, tantas vezes ensaiado, e tantas vezes rechaçado.


Quero que esqueça o tempo da minha fuga ao seu olhar, esse tempo que a fez envelhecer, chorar, gritar, procurar, esgaravatar em si forças que nunca pensou possuir, esquecer o espaço que a rodeava, morrendo a cada dia para logo renascer, na vã esperança de me encontrar.


O silêncio prolonga-se. Esmaga-me o peito cheio de saudades da minha mãe.
Passaram-se tantos anos.
Uma bofetada, outra e outra. Não as sinto, não me doem. Apenas o calor do meu rosto denuncia o acto de raiva.
Fecho os olhos, quero prender as lágrimas que se soltam, agora livres.
Sinto as mãos de minha mãe, limpando-as, olhos que sentem o meu choro em seus dedos, a sua boca bebendo os pingos de sal que caem, num gesto de saudade.
- Mãe? - Interrogo o seu silêncio teimoso.
Pega-me pela mão, amparando-nos ao levantar, olha o ventre despido que revela o meu segredo.
- Anda daí, fiz o teu bolo preferido! - Diz, enquanto a sigo obediente.
Na cozinha, sobre a mesa, o bolo de chocolate, a minha caneca branca rachada, restos que permaneceram à minha espera.
- Hoje faz anos que te fizeste mulher, neste dia anos depois, deixaste a escola, e hoje é também o aniversário do dia em que te foste embora ... - Diz baixinho, como que querendo actualizar-se, sem mágoas nem recriminações, apenas aceitando os factos.
Vacilo impotente perante a verdade.
- Hoje comemoramos o teu regresso. - Finaliza.
Sentamo-nos lado a lado na mesa da cozinha.
Uma réstia de sol anuncia o fim de um dia.
A sua mão repousa no meu ventre sossegado
- Obrigada Mãe - digo baixinho, num suspiro tranquilo.




Quarta-feira, 20 de Abril de 2005

Cadeia Literária






Tornei-me um dos elos desta corrente através da Zuca e do Zuco. Obrigada.



P. Não podendo sair do "Fahrenheit 451", que livro quererias ser?

R. "Escovei o cabelo 100 vezes antes de me deitar" de Melissa P.
"Sinto os tornozelos e os pulsos ligados a uma corda invisível. Eu estou suspensa no ar e alguém me puxa para baixo e grita com uma voz infernal, enquanto outra pessoas me puxa para cima. Eu balanço e choro, por vezes toco as nuvens, outras vezes os vermes. Repito para mim própria o meu nome: Melissa, Melissa, Melissa, como uma palavra mágica que pode salvar-me. Agarro-me a mim própria, estou abraçada a mim."



P. Já alguma vez ficaste apanhadinho(a) por uma personagem de ficção?

R. Pela Rapoza do livro "O principezinho" de Antoine de Saint-Exupéry, pela verdade que transmite a cada leitura e pelo despojamento que dá ao Amor.
"Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos..."



P.Qual foi o último livro que compraste?

R. O "Zahir" de Paulo Coelho.
"Portanto..., eu precisava que o meu rosto estivesse tão limpo como o seu. Ante sde me encontrar com ela, devia encontrar-me comigo."



P. Qual o último livro que leste?

R. "Memória das minhas putas tristes" de Gabriel Garcia Marquez.
"...Acorda-a, fode-a até pelas orelhas com esse pau de burro que te premiou o diabo pela tua cobardia e a tua mesquinhez. A sério, terminou com a alma: não vais morrer sem provar a maravilha de foder com amor."



P. Que livros estás a ler?

R. "Por amor da Índia" de Catherine Clément.
"Estavam de pé frente a frente. Uma mulher prendia uma rosa sonhada ao peito do homem que amava e nada era mais simples do que a felicidade naquele jardim. Os olhos de ambos haviam-se encontrado e não mais se deixavam, as mãos mal se tocavam... a eternidade voltou como uma estrela... só para ela, numa noite de paz.



P. Que livros(5) levarias para uma ilha deserta?

R.

1- "Os Maias" de Eça de Queiroz, onde, ainda hoje, coexiste a verdade nua e crua de um povo e que eu não quereria esquecer.

2- "O meu pé de Laranja Lima" de José Mauro de Vasconcelos, porque foi o primeiro livro que li, fazendo-me apaixonar ad eternum pelas palavras, e seria bom que fosse o meu último livro também.

3- "Verónika decide morrer" de Paulo Coelho, porque a vida tem um sabor que só na proximidade da morte conseguimos apreciar.

4- "O Principezinho" de Antoine de Saint-Exupéry, porque, surgindo a oportunidade de retornar à vida antes da ilha, quereria poder voltar amando com a sabedoria de uma Rapoza e a pureza de um Meninos.
5-"A menina gotinha de água" de Papiniano Carlos, porque é o livro que a minha filha está a ler, e que eu espreito quando ela adormece.



P. A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?

R.

- "shakermaker.blogs.sapo.pt" porque é alguém que me intriga, e gostria de conhecer as suas preferências e "influências" literárias (também porque duvido que me responda";

- "coisasdodia.blogs.sapo.pt" porque nunca consigo deixar um comentário, e é um blog que gosto de visitar (só não gostei do texto "hommage" ao Sporting, mas...);

- "fa4.blogs.sapo.pt" porque poderão sempre encontrar nos livros as melhores fantasias (só têm de ir procurar...).



E aqui acaba a soldadura do meu elo nesta corrente muito curiosa.
Domingo, 17 de Abril de 2005

Faltam apenas dias, horas, segundos....

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Recostei-me no banco e esperei.

A noite ainda não era cerrada, quase oito horas, a iluminação pública começava o seu piscar contínuo que mais parecia uma tentativa subliminar de adormecer a vida que ainda corria pelas ruas.

Pão, queijo em fatias e uma maçã compunham o meu jantar da noite.

Na rádio informavam, ainda, e repetidamente, das dificuldades do trânsito.

Suspirei, aborrecida, como se estivesse numa daquelas filas intermináveis que acompanham as pessoas no seu regresso a casa, no final de um dia de trabalho, e das quais não há fuga possível.

Ao meu lado vejo chegar aquela mãe cansada, que abre a mala do carro, num movimento repetido, donde retira as compras para o jantar da noite. Pela enésima vez, recoloca a mala no ombro, uma tentativa frustrada de desocupar uma das mãos. Abre a porta do edifício, trava a porta com os sacos e regressa para pegar no filho adormecido. Enquanto liberta o menino do cinto de segurança, pressinto-lhe o olhar terno, enquanto lhe absorve o cheiro quente, quase adocicado, restos de um dia que está a acabar.

Estremeço com saudades de cheiros que não quero esquecer.

Volto a olhar para a rua que desce, já iluminada, observo, indiferente, aquela menina, adolescente já, que espreita o fundo da rua, enquanto recebe um último beijo do namorado. As mãos sempre ocupadas com os livros e cadernos, telemóvel que não para de emitir e receber mensagens e toques. Iria jurar que nem falam um com o outro, simplesmente trocam sms. A adolescente recua no prédio, enquanto o rapazola, calças largas e descaídas na cintura, inicia o seu retorno a casa, o telemóvel de novo a tocar.

Sintonizo uma emissora no rádio, e, pela segunda vez, ouço o conselho do dia, “palavras para reflectir”, numa voz que sai monocórdica, numa tentativa quase sempre falhada para que a mensagem fique retida em qualquer memória.

Fecho os olhos e tento recordar a última música que ouvi.

“Quelqu’un m’a dit que tu m’aimais encore!” de Carla Bruni. Mas não foi na rádio. É a música que ouço incessantemente, constantemente repetida nos meus sonhos.

Ainda de olhos fechados, pressinto as vozes, ainda longe para que as ouça, mas perto o suficiente para que as reconheça.

Recomponho o corpo já alerta, sacudo os cabelos, pestanejo várias vezes, apurando o olhar para o que vou presenciar.

O menino moreno corre na frente, parando a cada chamada de atenção que lhe fazem, para logo recomeçar numa energia infinita. Cabelos curtos, escuros, sempre de mochila colocada, fralda da camisa de fora, olhar atento. Observa tudo, nunca olhando, num instinto desconcertante de criança.

Noto que está mais alto, talvez mais magro.

A menina vem segura pela mão, rendida à fragilidade dos seus três anos, arrasta pelo chão uma manta que já foi cor-de-rosa. Laço azul no cabelo escuro, usa um bibe cheio de rabiscos, hoje meio solto, talvez tenha alguns botões desapertados. Afinal hoje esteve calor. Ergue o olhar e sorri.

Um sorriso aberto e feliz. Continua linda.

Ele leva-a pela mão, na outra segura a mochila que tem o feitio de um coelho, também segura os casacos dos filhos. Tem o nó da gravata desapertado, o fato escuro sobre a camisa quase sempre azul. Descontraído, neste final de dia, caminha atento ao menino que corre na sua frente.

Vai parar na montra da papelaria, onde a última novidade infantil vai atrair o olhar sonhador da menina.

O irmão senta-se na beira do passeio, num movimento paciente de quem sabe que não vale a pena continuar. Olha para a rua, acena ao porteiro do prédio, onde vai entrar dentro de minutos. Olha para o pai suplicante, tentando abreviar a rotina de todos os dias.

A menina, nariz colado, na vitrina, escolhe a mochila que mais gosta.

Aquele homem grande ouve pacientemente, sabendo que o pedido será esquecido e logo trocado pela próxima atracção a fazer reluzir aqueles olhinhos já irresistíveis. Faz-lhe uma festa na bochecha e retomam o caminho.

Atenta, quase consigo ouvi-lo cumprimentar o porteiro que lhe dá conhecimento de algumas novidades do dia que passou.

A pequenita sobe-lhe pelo colo acima, consciente do conforto da sua casa.

A porta do prédio fecha-se.

Os meus olhos “vêm” quando ele chama o elevador, prime o botão que os levará ao quarto andar e suspira, satisfeito pelo regresso ao lar.

O elevador abre-se, os miúdos correm pela esquerda, numa energia renovada, quase caindo contra a porta do duplex onde vivem.

Procura a chave certa, no bolso do casaco, abre a porta, levanta a mochila esquecida do menino e deixa a porta fechar-se atrás de si.

Acompanho-o nas suas diligências diárias.

Os trabalhos de casa do João, o banho da Madalena, o telefonema para a mulher-a-dias para saber o que preparou para o jantar, pôr a mesa, ajudar a Madalena a acabar o último puzzle da sua boneca preferida, e repetir até à exaustão que os irmãos não gritam entre si.

Estremeço, olho para o relógio, já passou mais de uma hora.

A noite já instalada, a luz dos candeeiros ofusca-me o olhar, atraindo os primeiros insectos das noites quentes que recomeçam a cada ano.

Um carro qualquer, uma porta que bate, alguém fala alto, as grades da papelaria descem, encerrando assim um dia de trabalho.

No cimo da rua um carro escuro está parado. Sei que já lá está há alguns minutos.

Desligo o rádio. O silêncio invade-me e com ele a vontade de o quebrar.

Aguardo e logo vejo alguém, que não conheço, sair do carro, abre a outra porta e de lá sai uma mulher.

Adivinho-lhe o perfume, os cabelos claros, soltos e sedosos, acabados de pentear, a boca retocada e sempre brilhante pelo inseparável “gloss” com sabor a morango, os olhos azuis sedutores, delineados pelo lápis preto num contraste feito para evidenciar.

Bolsa a tiracolo, os óculos escuros pendurados na blusa decotada, o “blaser” displicentemente seguro por ambas as mãos.

Ela sorri feliz.

O homem afaga-lhe o rosto, numa carícia cúmplice, ajeita-lhe a blusa num gesto protector.

Olham em redor, seguros da solidão que os cerca e do segredo que partilham.

Ela inicia o seu caminho, segura, ele sem entrar no carro, abre a porta do carro, observa encantado a mulher que se afasta.

Sem olhar para trás, passa pela lavandaria, dá as boas noites ao porteiro que acabou o seu turno e que sempre se cruza com ela.

Na proximidade dos seus passos, vasculho o porta-luvas à procura de nada. Passa por mim, logo a seguir pára, a montra iluminada permite-lhe ver-se reflectida.

Sabe que está perfeita.

O porteiro da noite, acabado de entrar ao serviço, faz um qualquer comentário ao tempo, sabendo que não deve esperar resposta.

O elevador chega, fecha-se e sobe.

O sorriso cristaliza-se no seu rosto perfeito, respira fundo, sabe o que a espera. Entra então no seu duplex.

A casa agita-se. O João corre e abraça-a feliz, falando ininterruptamente do seu dia, do golo que finalmente marcou e do banho que já ia tomar. A Madalena ensonada aninha-se no seu colo, rosto enfiado naquele perfume sedutor, aconchegada pelo sorriso lindo que acaba de receber.

Apetece-me vomitar.

Pedro assoma-se à ombreira da porta da cozinha, cansado, camisa desfraldada, aberta no peito, avental na cintura, confirma a beleza da mulher que acaba de chegar e que ama infinitamente.

Acena-lhe consciente do momento que não é dele e confirma-lhe que as crianças já jantaram, a Madalena já ia dormir, o João assim que terminasse o banho também. Se ela quisesse podia ir deitá-los que o jantar manter-se-ia quente.

Provavelmente, Maria responde-lhe que não tem fome pois lanchou tarde, vai apenas deitar as crianças, tomar um banho rápido, pois está esgotada.

Um pouco desiludido, ou talvez não, arruma os restos no frigorífico, limpa a bancada da cozinha asséptica no seu aço frio e brilhante.

Apaga a luz da cozinha e sai para a varanda.

Saio do carro, em silêncio, olho para aquele homem e aguardo que acenda o seu único cigarro do dia. O único vício que ainda mantém. Inalo o odor que não chega até mim, mas que reconheço e desejo que me invada, e que deixe o seu rasto em mim.

Olha as estrelas que brilham, por entre as baforadas de fumo que sobem e se perdem.

È um homem feliz, tem a vida que escolheu, dois filhos lindos, uma mulher que ama e todos invejam, um trabalho que o preenche.

Os meus olhos seguem os seus movimentos, sentem os seus gestos repetidos. As lágrimas que me escorrem, pela cara, caem intermináveis e sempre renascidas.

Ele entra na sua casa, as luzes apagam-se, a TV ligada e reflectida nos vidros das janelas.

Levanto a beata caída no chão, ainda arde, saboreio o calor dos lábios que instantes antes a possuíam.

Deixo-a cair de novo, e entro no meu carro.

O meu jantar não aconteceu.

Volto para a minha casa vazia. Guardo o pão seco, o queijo bafiento e rançoso, a maçã amarelecida.

Deito-me na cama que partilhei com o Pedro, onde gerei os meus filhos João e Madalena.

Naquela cama encontrei Maria e Pedro amando-se como nunca fui amada.

Naquela cama tentei morrer.

Naquela cama renasci.

Renasci para ver Pedro feliz com a mulher que ama, e que o trai todos os dias.

Para ver João e Madalena felizes pelo pai que têm e pela mulher linda que o faz felizes e que nunca chora.

Para todos os dias viver a vida que não é minha.

Fecho os olhos, ajeito-me na cama, enroscada nos braços de Pedro, João e Madalena.

Adormeço feliz.

Espelho meu…

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Pára!

Pára, Pára, Pára!!!!

Merda, Pára de olhar.

Que vês?

Diz-me. Anda lá, diz.

O que vês?

Diz.

Diz qualquer coisa.

Não me ouves?

Responde.

Peço-te que pares.

Não me ouves…

Não?

Pois não.

Ouves-me?

Pára!

Se pelo menos…

Sim, se pelo menos

Parasses de me olhar.

Será que olhas para mim?

É para mim que olhas?

Não?

Acho que não.

Afinal, tudo o que vês,

És tu.

É o espelho que te enfrenta.

Quarta-feira, 13 de Abril de 2005

Amor II (parte 2)

pb_dependencia.jpg
Quando vieste trabalhar na empresa encontraste uma miúda, desenrascada é certo, mas absurdamente ingénua, crédula, envolvida nos meandros da actividade empresarial. Afinal o 12º. Ano terminado, um ano antes, apenas me tinha dado bases para um crescimento que acabou por se tornar auto-didacta (com tudo o que tem de bom, e de mau).

Estas palavras introdutórias servem apenas para relembrar o meu primeiro ano de trabalho contigo.

Trabalhávamos, como ainda hoje, em sectores distintos.

O teu trabalho como Director Financeiro, conferia-te uma aura de poder, hoje mais esbatida é certo, mas que me impunha respeito.

O meu trabalho desde sempre ligado ao contacto pessoal e ao apoio administrativo (ainda me rio com esta do “apoio”, afinal era só eu que lá trabalhava, logo fazia tudo). O contacto com clientes, fornecedores, a própria gerência na altura, tudo isso implicava uma grande vertente humana no sentido em que as relações se estabeleciam numa base de conhecimento que me fazia feliz.

O meu trabalho era diferente.

Como eu sou tão diferente de ti.

Sem dúvida.

Desde logo, e numa primeira análise as deferências entre nós eram mais que muitas.

A empresa, recente no sector, primava pela poupança de pessoal, logo menos encargos, exigências enormes e os eternos horários inexistentes e sempre alargados.

E afinal que mal tinha?

Não tínhamos responsabilidades familiares, todo o tempo ocupado a trabalhar era bem aproveitado.

O facto de seres mais velho, experiente e com a responsabilidade de colocares a casa em boa saúde financeira, tornaram-te horrível.

Exigiam-te tudo, e tu logo te vingavas exigindo aos outros.

A mim (não havia mais ninguém).

Quantas vezes me fizeste chorar? Tantas e de tal forma que várias vezes equacionei ir-me embora. Hoje sei que o deveria ter feito. Afinal tinha vinte anos e um mundo à minha frente.

Eras tão pouco sensível!!! “Duro como granito” era a melhor forma de te descrever.

E não tinhas a mínima noção dessa tua característica. Mais uma vez o facto de sempre teres sido um homem só, mimado por quem te rodeava, fazia perceber que não conhecias os outros e nem te preocupavas com isso. Foste filho único, tardio no nascimento, tornado homem pela idade que passava, imaturo de afectos.

De qualquer forma conseguíamos manter um-não-sei-quê que permitiu criarmos cumplicidades que souberam perdurar até hoje.

Aquele primeiro ano a dois foi muito complicado.

Embora te temesse, era teimosa, e enfrentava-te de peito aberto, com a leveza da minha idade, sem subterfúgios ou manhas.

Ia casar-me em Agosto.

Ias divorciar-te em Novembro após uma separação de cerca de um ano.

Recordo o teu olhar espantado, incrédulo talvez, quando soubeste da novidade.

Não me recordo de teres efectuado qualquer comentário, ao contrário de outras pessoas.

Olhavas para mim várias vezes, durante os dias que iam passando, de uma forma que talvez nem tu percebesses. Pressenti que era algo que te incomodava. Talvez pelos meus “verdes anos”, talvez porque ainda me vias como uma menina.

Um incómodo que só anos mais tarde percebi.

Eu era uma mulher, e estavas a perceber isso, a miúda que trabalhava contigo ia casar. Sobretudo existia outra pessoa, outro interesse na minha vida. Era alguém que te era estranho. Era uma parte de mim que desconhecias.

Esse novo olhar sobre mim fez de mim tua confidente.

…

Namoravas imenso.

Recordo que atendia os telefonemas das tuas conquistas, fossem desse dia, da noite anterior.

Como se fosse hoje, recordo os gestos, a confiança que tinhas em mim, e já lá vão treze anos desde essa altura.



Ocupavas as duas linhas telefónicas da empresa (ainda não tinhas sido abençoado com o teu bendito telemóvel), e ainda a linha de fax.

Riamos cúmplices, porque estava atenta à chegada de estranhos (no nosso caso só os gerente), e tu porque falavas ao ouvido de alguém, e tinhas audiência (e ainda ouvias as minhas dicas).

Quantas vezes as aguentei em linha, com desculpas de outras chamadas, reuniões e afins?

Incontáveis.

De vez em quando cansavas-te do assédio e aí era terrivelmente mal-educado.

Ridiculamente infantil no tratamento que lhe davas, chegavas a ser ofensivo.

As tuas amizades coloridas, como hoje são comummente chamadas, eram tratadas como lixo, e infeliz daquela que pretendia ser para ti o que nunca quiseste que ela fosse.

Para ti eram cama, experiências, fantasias, descartáveis em suma.

Dizia-te “se elas soubessem quem realmente é, mandavam-no à merda e nunca mais quereriam saber de si. Se fosse comigo iria ver!!!”.

Piscavas-me o olho, sorriso maroto, como a esconder um segredo.

Eu sorria contrafeita contra a curiosidade que nascia. Curiosidade que vivia há muito tempo em mim.

-Queres confirmar? – Questionavas com picardia – Não sou egoísta – acrescentavas.

Fazia de conta que não ouvia e raramente te respondia.

…

Com o tempo chegaram as “nossas” sextas-feiras, último dia da semana.

Era o dia da nossa despedida para o fim-de-semana que chegava.

Agora, enquanto escrevo, percebo que era mesmo isso.

Esses dias eram aqueles em que te aproximavas de mim, entrando no gabinete de mansinho, e debruçavas-te na minha mesa.

Logo estendias a mão e tocavas-me o pescoço, atrás das orelhas. Instintivamente fugia desse toque, que só de lembrar me faz encolher. O meu corpo ainda reconhece os gestos, as sensações desse tempo longínquo e quase perdido.

Corada, pedia-lhe para parar.

Insistia, aproximando-se mais de mim, eu ria mais alto, quase gargalhada, no tentativa, talvez, de me distanciar e um momento mais intimo.

Agrafador na mão, qual escudo protector, conseguia evitar um contacto iminente.

Saías, para logo voltares. Tantos risos, gargalhadas intermináveis, e os nossos olhares, escuros, que trocávamos no segredo de um desejo profundo e latente.

Adorava aqueles momentos.

Sentia-me só tua, e ainda que por instantes eras só meu. Não consigo, mesmo com esforço, reconhecer o instinto que me garantia que éramos um só, mas estava lá a sensação de unidade.

E sinceramente, naqueles dias tudo era tão inocente, acredito que no intimo de cada um de nós, mais não havia do que prazer pela companhia que nos proporcionávamos.

E sendo assim, havia já o nosso toque, a nossa espera, a certeza do fim-de-semana que começava com a nossa despedida.

Quando aqueles dias não aconteciam assim, algo estava errado. Ou andavas amuado e rabugento, hábitos arreigados que ainda hoje subsistem em ti, ou eu em contrapartida andava atulhado nas burocracias das exportações da empresa, e sabias que eu não te corresponderia.

Naqueles dias menos nossos, olhavas-me e eu respondia, cansada, mas atenta e sempre atrevida:

- Fique descansado, quando eu quiser diversificar será consigo! Prometia, convicta de que nunca aconteceria.

- Vê lá, não demores muito – retorquias, enquanto saías.

Eu ria, baixava o olhar, retomando o trabalho, guardava na memória os teu olhar quente, e não pensava mais no assunto.

…

Durante anos foi esta a nossa rotina.
Sexta-feira, 8 de Abril de 2005

Ela

0010p.jpg
Via-a pela primeira vez quando entrámos. Logo notei a elegância discreta que monopolizava as atenções.

Comprei o meu bilhete e dirigi-me ao quiosque ao lado para comprar algumas revistas.

Olhei à minha volta, mas ela tinha desaparecido.

Esmoreci um pouco, afinal poderia ser uma companhia agradável.

Segui para o meu lugar no comboio já impaciente com o atraso da partida.

Acomodei a mala de viagem, debaixo do banco, preparando-me para a viagem longa.

Desfolhei a revista que havia comprado à procura de algum artigo que clamasse a minha atenção imediata.

Nada. Fechei-a sobre os joelhos e reclinei-me no banco olhando o bulício da estação, desejando o início da viagem e com ela a alteração da paisagem.

…

Conforme as imagens passavam pelo meu olhar, algumas deixando o desejo de serem tocadas, percebendo a realidade quase impossível de tanta beleza, os meus olhos fecharam-se.

…

Um aroma intenso a café. Olho em meu redor procurando a origem do meu despertar.

Voltou! Ali está ela! Sentada, recolhida calmamente, olha pela janela.

O que verá? Os olhos focados no vidro estarão à procura de alguém, algo??...

Poderá ser uma memória, uma recordação!

Talvez não, talvez deseje, simplesmente, que a viagem acabe depressa.

Afinal era isso que eu queria quando entrei na carruagem.

Agora desejo que esta viagem dure. Que dure o tempo necessário para eu conhecer esta mulher.

…

Levanto-me vagarosamente, e sinto a revista cair a meus pés, fazendo algum barulho. Ela não olha, não sentiu a minha vontade.

Levanto a revista e deixo-a no meu lugar. Saio para a coxia e o comboio balança um pouco mais, enquanto reduz a velocidade.

Embaraçado, tenho mesmo de me segurar ao banco do lugar que ela ocupa.

-Desculpe, perdão, foi o comboio – balbucio expectante.

Ela movimenta o seu rosto para mim, como já sabendo a posição em que estou, elevando um pouco olhar.

-Não se preocupe, estas viagens são assim mesmo. Espero que não se tenha magoado! – A sua voz sai rouca, quase gutural, num esforço que a educação concerteza a obrigou.

-Estou bem, não se preocupe! Ia agora mesmo tomar um cafezinho – respondo rapidamente. - Posso convidá-la? – Atrevo-me. Ela já não me olha.

O seu rosto voltara-se de novo para a paisagem que corria, de novo, veloz, lá fora.

Não volto atrás e sigo pelo corredor, à procura do café que já não me apetece.

Enquanto atravesso as carruagens penso, ininterruptamente, naquela voz, na forma directa como me respondeu.

De repente, percebo que não vi os seus olhos, olhei para ela e não a vi.

Quero voltar e que tudo se repita para poder ver o que a voz dela não deixou.

Quase corro, chego ao balcão e peço um café.

-Estou com pressa, por favor não demore – como se tivesse de ir a algum lado!!!. O empregado ao atender-me, automaticamente, concerteza habituado a ouvir de tudo, pensa exactamente o mesmo que eu.

Deixá-lo pensar, afinal tenho um objectivo, e tenho realmente pressa!!! – Convenço-me inconscientemente.

O café, que mais sabe a água de lixívia misturada com cevada, deixa-me um gosto amargo na boca.

Engraçado, o cheiro intenso que me acordou, já não o recordo!!!

Volto ao meu lugar.

Incerto, volto atrás para confirmar o número da carruagem.

Não me enganei na carruagem, mas falta algo que confirme que o meu lugar é aquele.

Ela já não partilha o meu espaço de visão, sequer partilha o espaço da carruagem.

Aproximo-me do meu banco, a revista está lá, a minha mala continua onde a coloquei, sento-me e parece que a viagem se está a iniciar.

Olho pela janela, onde as imagens não param de correr, devolvo o olhar para o outro lado do comboio, à procura daquela mulher elegante e discreta.

Não cheira a café.

Resolvo-me a fazer as palavras cruzadas, procuro a caneta azul, oferta de um qualquer propagandista médico, no bolso do casaco.

Abro a revista, folhei-o as páginas à procura do passatempo que me vai manter ocupado por algum tempo.

…

Sinto um toque no ombro, o inspector pede-me o bilhete que atabalhoadamente tento encontrar.

Percebo que estive a dormir, a viagem está a chegar ao fim.

Enquanto o bilhete me é devolvido, olho em volta.

No reflexo do vidro, onde em letras vermelhas informam “quebrar em caso de emergência” vejo um casaco em movimento. Rapidamente olho para a plataforma da estação azul.

Aquela mulher linda olha para mim, sorri levemente. Ergue o dedo indicador aos lábios de carmim pintado, na sua mão fechada, e percebo-lhe o sinal de segredo.

Saio a correr, procuro-a entre os poucos transeuntes que por ali se vão deixando estar.

Perdia-a.

Volto, o andar tolhido, embargado pela perda de quem não conheci.

No assento a revista aberta.

As palavras cruzadas que não iniciei estão completas pela caneta preta que não possuo.

Inflamado procuro.

A sua letra perfeita e delicada esmaga-me de felicidade.

…

“Não pude aceitar o seu convite para tomar café. Perdoe ter usado a sua revista para fazer as palavras cruzadas. Aceite por favor as minhas desculpas. Daqui a um mês, exactamente um mês, talvez possa voltar a convidar-me!!! Espero por si.”



Olhei as palavras escritas.

Em meu redor tudo estava igual.

Dentro de mim tanta coisa mudara.

…

Espera por mim, quase grito feliz.

Daqui a um mês, exactamente um mês, espero que aceites o meu convite.

Nesse dia vou olhar-te nos olhos e vou saber quem és.

No ar o cheiro a café tornou-se forte e intenso.

Sentei-me à espera que a viagem acabasse depressa.




Segunda-feira, 4 de Abril de 2005

Viverás em mim,

PAR84394.jpg

No dia 2 de Abril de 2005 morreu o Papa da minha vida.

Pela idade com que me foi apresentado (eu tinha na altura sete anos), e sobretudo por que ninguém mais, como o primeiro amor, poderá ocupar o seu lugar.

Reafirmei também, nesse dia, a certeza de que ele será para sempre uma referência na minha vida porque, como a foto ilustra, ele foi sempre para mim um Homem iluminado.

Mais do que os Dogmas da Igreja, mais do que a tradição milenar de um Cristianismo Católico Romano, muito mais do que as exigências que fez como Sumo Pontífice, ele foi e será sempre aquele que, de uma forma natural e próxima, soube falar-me ao coração.

Não porque o via, não porque o ouvia, mas porque o sentia, Karol Wojtila é um senhor inesquecível.

Pela Paz que pediu,

Pela União entre os Povos, e seus Credos e que tanto valor tinham para ele,

Pela Família que não teve, mas que sempre amou,

A mim que amou incondicionalmente,

Pela proximidade com que sempre se apresentou, e pela visualização que deu a quem não tinha voz,

Pelo Homem igual a todos nós, nas sua força e no seu declínio exemplar e que recordarei com reverência,

Para ele a minha eterna gratidão e o meu amor.

Vou ter muitas saudades do conforto que o seu rosto, através do seu olhar seguro e doce, e da delicadeza do seu sorriso, me dava. Das mãos que nunca batendo no seu peito, manteve sempre abertas, porque todo ele era generosidade.

Mais do que lembrar o que era contrário à minha perspectiva do mundo de hoje, recordarei sempre o Amor que sempre foi apanágio da sua vida.

E acredito que era mesmo isso que João Paulo II queria.

Amando ensinou-nos o que é realmente importante.

Obrigada,

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