Quinta-feira, 31 de Março de 2005

Quando chegava o Sol...

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As recordações mais nítidas da minha infância estarão sempre ligadas aos dias primaveris, cheios de sol, com brisas suaves, longos, cheios de risos, cheios de luz e imensas gargalhas.



Não me recordo de algum dia ter rido e logo a seguir ter pensado, ou ser admoestada, “quem tem muito riso, tem pouco juízo” ou, então, na versão mais cínica e contemporânea, que nos impede de mergulhar na sanidade de uma boa gargalhada que reza “... Estou muito risonha, o dia ainda vai acabar em choro…”.



Não. Nada disso. Ríamos e vivíamos a valer aqueles dias, cheios de nada, mas que nos enchiam de vida. Crescíamos a olhos vistos. Viçosos como a hortaliça da horta, cheios de cor como as flores dos campos que nos rodeavam, cheios de vida como a água, célere e livre, que corria pelo riacho da minha aldeia.



Recordo-me de nas férias da Páscoa sair pelo portão lá da casa da minha ama, que era também a nossa senhoria, eufórica e ansiosa pela tarde que me esperava. Normalmente a “outra mãe”, é assim que ainda hoje chamo a senhora que nos cuidava, enquanto os nossos pais estavam a trabalhar, preparava um lanche, que nunca deixando de ser composto pelas mesmas coisas, era sempre novidade. Essa novidade existia apenas no local onde parávamos para o apreciar.



O Sr. L. e a “outra mãe”, casal sem filhos, ocupava-se de nós como se fôssemos suas, embora, chegada a altura dos cascudos, eu sempre ter entendido que, se fosse filha deles não seriam tão ponteiros, mas enfim, como ainda hoje me dizem “…só se perderam as que caíram ao chão”.



Já naquele tempo o entendimento que tinham da vida lhes dizia que as crianças precisam de ar livre para crescer saudavelmente, e faziam questão de a cada dia da semana, menos à sexta-feira, que era o dia das limpezas, nos proporcionar destinos diversos, numa aldeia sempre igual.



Uns dias íamos à tapada (aglomerado pequeno de floresta composta por eucaliptos e pinheiros bravos) que possuíam, respirar o ar puro e verde, que faria bem na prevenção das bronquites, noutros dias caminhávamos pela margem do rio, numa distância que eu considerava enorme, e hoje descubro que não eram mais do que três quilómetros (de qualquer modo sempre eram 3.000 metros), para apreciarmos a vida no rio, composta por girinos e outros bicharocos igualmente feios, onde podíamos também molhar os pés e habituar o corpo à mudanças de temperatura, noutros dias ainda caminhávamos no meio dos campos.



E quando digo caminhar nos campos, falo literalmente, ou seja, não existiam caminhos, nem percursos definidos, era a nossa vontade e energia que nos guiava.



E existiam flores amarelas, papoilas vermelhas, lírios de cheiro (em abono da verdade era mais cheirete), urtigas que não devíamos tocar, mas que sempre arrisquei, afinal a comichão causada não era tanta que não valesse a desobediência, plantas que tinham uns cabelinhos brancos, que nós soprávamos perguntando a quem nos acompanhava “… quantos cabelos tem o teu pai?”, obviamente quase sempre a plantinha respondia com uma “carecada” louca, pois os pelinhos voavam todos pela vontade do nosso sopro.



E corria, corria, caía ao tropeçar nos troços das couves, e ficava enojadíssima pelo toque da couve apodrecida, mal cheirosa, a fazer lembrar a caldeirada do Natal passado.



Mas logo me levantava, pegava na mão da minha irmã, que já estava ao meu lado pronta para cair comigo, e corríamos como loucas, pletóricas de vida e felicidade. Chamavam por nós, como descargo de consciência, mas ambos sabiam que só pararíamos junto ao lavadouro, exaustas, sequiosas e cheias de curiosidade pelas lavadeiras, pelo que lavavam, diziam, cantavam, choravam e riam.



O lavadouro era o tanque da nossa rua, para as pessoas que não o tinham em casa, e fora construído num local onde o riacho se alargava um pouco mais. Mãos hábeis de necessidade construíram em tempos recuados um tanque de pedras feito, pedregulhos enormes que ainda hoje lá estão, qual represa, qual barragem. Era o nosso tanque, máquina de lavar do povo.



Ficava num baixio, rodeado de verde, e debaixo de parte da estrada que levava e trazia aquelas mulheres no seu ” rau rau” diário, que era mais feito de vício do que necessidade.



Era lindo vê-las a estender a roupa branca, bater com as passadeiras no granito escuro, o sabão para cima e para baixo, deixando crescer a espuma que o percurso do rio levava para longe, mantendo a água sempre límpida e transparente.



Ao longe enquanto nos aproximávamos vislumbravam-se flores brancas enormes, outras mais pequenas com formatos estranhos. Descobríamos rapidamente que as flores eram roupa branca, composta pelas cuecas e ceroulas que na altura se usavam, que estava tão simplesmente a corar ao sol.



Exaustas deixávamo-nos cair ali no meio da erva, a imaginar príncipes, castelos, tigres e leões, na espuma que corria e desaparecia, riamo-nos quando as senhoras nos olhavam e como sempre não sabiam quem era quem e trocavam os nossos nomes. Elas riam também e procuravam a nossa ama e o marido para poderem então tirar as dúvidas.



Eles chegavam, sorridentes, felizes, cúmplices como sempre, iam sentar-se nas escadinhas que levavam ao tanque e então começavam as histórias, do antes e do que se passava então.



Para nós já não era importante, e comíamos o nosso pão com Tulicreme, ou marmelada caseira, devorávamos as amêndoas francesas, restos de folar, e no fim bebíamos o leite morno misturado com a cevada simples preparada horas antes em casa.



Que delícia!



E no lavadouro a roupa lavava-se, as mulheres cantavam, o dia ia chegando ao fim, e nós já impacientes corríamos de novo à procura de nada, que era tanto naqueles dias.





na: nos meus textos muitas vezes misturo o singular e o plural, apenas porque a minha experiência até à alguns atrás era feita sempre a duas, pois como já referi noutro texto sou gémea de outra menina.



publicado por eu34 às 15:29
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