Sexta-feira, 8 de Abril de 2005

Ela

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Via-a pela primeira vez quando entrámos. Logo notei a elegância discreta que monopolizava as atenções.

Comprei o meu bilhete e dirigi-me ao quiosque ao lado para comprar algumas revistas.

Olhei à minha volta, mas ela tinha desaparecido.

Esmoreci um pouco, afinal poderia ser uma companhia agradável.

Segui para o meu lugar no comboio já impaciente com o atraso da partida.

Acomodei a mala de viagem, debaixo do banco, preparando-me para a viagem longa.

Desfolhei a revista que havia comprado à procura de algum artigo que clamasse a minha atenção imediata.

Nada. Fechei-a sobre os joelhos e reclinei-me no banco olhando o bulício da estação, desejando o início da viagem e com ela a alteração da paisagem.

…

Conforme as imagens passavam pelo meu olhar, algumas deixando o desejo de serem tocadas, percebendo a realidade quase impossível de tanta beleza, os meus olhos fecharam-se.

…

Um aroma intenso a café. Olho em meu redor procurando a origem do meu despertar.

Voltou! Ali está ela! Sentada, recolhida calmamente, olha pela janela.

O que verá? Os olhos focados no vidro estarão à procura de alguém, algo??...

Poderá ser uma memória, uma recordação!

Talvez não, talvez deseje, simplesmente, que a viagem acabe depressa.

Afinal era isso que eu queria quando entrei na carruagem.

Agora desejo que esta viagem dure. Que dure o tempo necessário para eu conhecer esta mulher.

…

Levanto-me vagarosamente, e sinto a revista cair a meus pés, fazendo algum barulho. Ela não olha, não sentiu a minha vontade.

Levanto a revista e deixo-a no meu lugar. Saio para a coxia e o comboio balança um pouco mais, enquanto reduz a velocidade.

Embaraçado, tenho mesmo de me segurar ao banco do lugar que ela ocupa.

-Desculpe, perdão, foi o comboio – balbucio expectante.

Ela movimenta o seu rosto para mim, como já sabendo a posição em que estou, elevando um pouco olhar.

-Não se preocupe, estas viagens são assim mesmo. Espero que não se tenha magoado! – A sua voz sai rouca, quase gutural, num esforço que a educação concerteza a obrigou.

-Estou bem, não se preocupe! Ia agora mesmo tomar um cafezinho – respondo rapidamente. - Posso convidá-la? – Atrevo-me. Ela já não me olha.

O seu rosto voltara-se de novo para a paisagem que corria, de novo, veloz, lá fora.

Não volto atrás e sigo pelo corredor, à procura do café que já não me apetece.

Enquanto atravesso as carruagens penso, ininterruptamente, naquela voz, na forma directa como me respondeu.

De repente, percebo que não vi os seus olhos, olhei para ela e não a vi.

Quero voltar e que tudo se repita para poder ver o que a voz dela não deixou.

Quase corro, chego ao balcão e peço um café.

-Estou com pressa, por favor não demore – como se tivesse de ir a algum lado!!!. O empregado ao atender-me, automaticamente, concerteza habituado a ouvir de tudo, pensa exactamente o mesmo que eu.

Deixá-lo pensar, afinal tenho um objectivo, e tenho realmente pressa!!! – Convenço-me inconscientemente.

O café, que mais sabe a água de lixívia misturada com cevada, deixa-me um gosto amargo na boca.

Engraçado, o cheiro intenso que me acordou, já não o recordo!!!

Volto ao meu lugar.

Incerto, volto atrás para confirmar o número da carruagem.

Não me enganei na carruagem, mas falta algo que confirme que o meu lugar é aquele.

Ela já não partilha o meu espaço de visão, sequer partilha o espaço da carruagem.

Aproximo-me do meu banco, a revista está lá, a minha mala continua onde a coloquei, sento-me e parece que a viagem se está a iniciar.

Olho pela janela, onde as imagens não param de correr, devolvo o olhar para o outro lado do comboio, à procura daquela mulher elegante e discreta.

Não cheira a café.

Resolvo-me a fazer as palavras cruzadas, procuro a caneta azul, oferta de um qualquer propagandista médico, no bolso do casaco.

Abro a revista, folhei-o as páginas à procura do passatempo que me vai manter ocupado por algum tempo.

…

Sinto um toque no ombro, o inspector pede-me o bilhete que atabalhoadamente tento encontrar.

Percebo que estive a dormir, a viagem está a chegar ao fim.

Enquanto o bilhete me é devolvido, olho em volta.

No reflexo do vidro, onde em letras vermelhas informam “quebrar em caso de emergência” vejo um casaco em movimento. Rapidamente olho para a plataforma da estação azul.

Aquela mulher linda olha para mim, sorri levemente. Ergue o dedo indicador aos lábios de carmim pintado, na sua mão fechada, e percebo-lhe o sinal de segredo.

Saio a correr, procuro-a entre os poucos transeuntes que por ali se vão deixando estar.

Perdia-a.

Volto, o andar tolhido, embargado pela perda de quem não conheci.

No assento a revista aberta.

As palavras cruzadas que não iniciei estão completas pela caneta preta que não possuo.

Inflamado procuro.

A sua letra perfeita e delicada esmaga-me de felicidade.

…

“Não pude aceitar o seu convite para tomar café. Perdoe ter usado a sua revista para fazer as palavras cruzadas. Aceite por favor as minhas desculpas. Daqui a um mês, exactamente um mês, talvez possa voltar a convidar-me!!! Espero por si.”



Olhei as palavras escritas.

Em meu redor tudo estava igual.

Dentro de mim tanta coisa mudara.

…

Espera por mim, quase grito feliz.

Daqui a um mês, exactamente um mês, espero que aceites o meu convite.

Nesse dia vou olhar-te nos olhos e vou saber quem és.

No ar o cheiro a café tornou-se forte e intenso.

Sentei-me à espera que a viagem acabasse depressa.




publicado por eu34 às 15:21
link do post | favorito
De Anónimo a 12 de Abril de 2005 às 03:17
amor á primeira vista...será :) abraçosAzorboy
(http://livretransito.blogs.sapo.pt)
(mailto:marco_Azor@sapo.pt)
Comentar:
De
( )Anónimo- este blog não permite a publicação de comentários anónimos.
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